Hoje eu te flagrei olhando
pela janela, procurando os céus por entre os prédios, planejando voar por aí e
só voltar depois de sobrevoar tudo que existe. Você não viu quando cheguei,
estava perdido, olhar fixo – parecendo buscar o que quer. Tentei pensar sobre o
que ainda te prendia ali, imóvel. Faltava tão pouco para voar, só você não viu,
não acreditou – ficou com medo de cair. Cair, que mal tem? Quando não se tem
limites também não se tem chão, e quando tem limites, a gente tira, como se
tira uma pedra no sapato, é simples. Tudo é bem mais simples do que teus olhos
frenéticos parecem te mostrar. Vai, é só os deixar revirar quando pedem, fechar
quando deve e os ignorar quando dá. Deixa teus sentidos terem vida própria, teu
tato respirar, livra teus ouvidos dos teus pensamentos bobos, os deixa escutar,
permite tua boca fazer as pazes com a tua voz, reencontra com teus pés e diz
assim: ”Vão, podem andar!”. Junta tudo que você sabe e esquece, constrói tudo
de novo quantas vezes forem necessárias para se ter certeza de que fez a coisa
certa. Não faça coisas certas, faça o que quiser ! Se der nem nos ouça, a gente
te perdoa – aproveita que está aí bem perto da janela e voa, voa!
Manual de Quase Tudo
"Talvez o melhor de sabermos ler e escrever não seja a pura necessidade. Na realidade, é o poder de dizer sem precisar falar, de mostrar sem precisar apontar, e sentir o quanto um conjunto de letras podem expressar nossos pensamentos (sentimentos). Manual de Quase Tudo é mais uma prova de que: Uma palavra vale mais que mil imagens."
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domingo, 4 de agosto de 2013
sexta-feira, 26 de julho de 2013
Onde foi?
Onde foi que você se perdeu?
Onde foi que sua calma e tranquilidade
escorreram pelo seu bolso furado? Ou melhor: decidiram te abandonar. Sua calma,
por maus tratos, e a tranquilidade por vergonha de te pertencer. Onde foi que
você deixou de ver o brilho do céu, agora cada vez mais apagado por suas burras
brigas, inúteis. Onde foi que você deixou de ouvir todos aqueles que te amam,
que querem completar-te, em função da sua ilustre experiência de vida,
infalível – petrificada. Onde foi que seus gritos tornaram-se mais altos e
claros que o som do seu canto, da tua voz falha ao acordar, do seu sorriso
fino. Onde foi, heim?
Seja lá onde for, desejo que
nunca mais volte. Nem mesmo para buscar as coisas que deixou jogadas no
caminho, nesse caminho sem volta. Não há garantias de que você não vá se perder
igualmente, então não vá. Não vá !
quarta-feira, 17 de julho de 2013
Palavra
Ei Palavra, mais uma vez vou
precisar usar-te. Tu que sempre chega tão mansa, em um silencio calmo,
pedindo-me que a use. Nas horas mais não oportunas da minha noite chegas,
pedindo colo. Suplicando: "Me escreve, que em troca te dou paz”. Vou
precisar usar-te para dizer tudo aquilo que não sai da boca, não por falta de
coragem, ou por medo, mas sim por falta de capacidade: não me foi ensinado
escrever com a voz, só consigo dizer com letras, algum papel e aquele
sentimento louco que me toma por completo quando consigo fazê-la sair da minha
mente, te dar vida e cor – e ao saber que és toda meu reflexo, desde a forma,
até o sentido – orgulho-me, por ter-te só minha, minha palavra.
Agora aqui estamos, no mesmo plano. Você nascida de
mim, e eu de você. Eu de carne-osso, você tinta e papel. Seja bem-vinda!
Contudo, Palavra – tome cuidado. Como seu pai preciso alertar-te sobre os
perigos do mundo aqui fora. Antes a tinha protegida no calor dos meus
pensamentos, era segura e totalmente por mim controlável. Agora, não mais:
podem traduzir-te mal, dizer coisas que você não é, podem até rir de ti! Dar-te
sentidos que nunca imaginamos que podias ter. Toma cuidado, vai – vou estar
daqui te olhando, enquanto você entra em outras mentes e se transforma ao gosto
daquele que te lê.
Mas promete uma coisa, uma única coisa? Jura que vai
manter o frescor e o carinho com que te fiz? Que vai conservar o amor das tuas
letras e o sentimento alegre que surgiu quando minhas mãos te esculpiram?
Jura?!
Sopro
Hoje a vida me pareceu um
sopro.
Um sopro repentino.
Mas um sopro-furacão.
Daqueles que, mesmo leves, são
capazes de acabar com os nossos vistosos castelos de cartas.
Capazes de esvoaçar nossos
cabelos enquanto corremos, de nos fazer sentir o vento sobre a pele ou um
sussurro fino no ouvido.
Um sopro-soco: dado para
acordar aqueles que dormiram sobre a brisa tranquila de outrora.
Enfim, um sopro - que quando
solto pela boca de quem sabe - transforma-se em um belo assobio.
Mãos
Certa vez encontraram-se duas
mãos em uma noite dessas, num táxi qualquer. Uma, que ansiava pelo encontro há
tempo, assustada pelo acoplamento súbito inesperado; outra tímida quieta, mas
certa de onde estava. Brindavam as unhas, sentiam os dedos. Forjaram votos de
não abandono, aquecimento mútuo, com direito a paradas nos sinais. Faziam piada
das outras duas, tão longe e frias. Ajeitavam-se nas curvas da rua, para o bem
do pacto. Quando de tão juntas já eram uma só, lembraram que eram parte de um todo
– subordinadas. Veio a ordem de separação, motor desligado. Tinham lágrimas nas
palmas. Mesmo assim balançaram e deram “Adeus, obrigado(as)”. Afastadas, cada
uma foi-se esconder no seu respectivo bolso, envergonhadas de não poderem nem
honrar suas próprias promessas.
Notas de um ignorante
Millôr Fernandes
"Entre as coisas que me surpreendem e humilham, figura
esta, fundamental, que é a cultura de meus amigos e conhecidos. Não só a
cultura no sentido clássico, mas também o conhecimento imediato das coisas e
fatos que lhe estão sob os olhos no dia-a-dia da existência. Quem está a meu
lado sempre leu mais livros do que eu, conhece mais política do que eu, já
esteve em mais países do que eu, já teve mais casos sentimentais do que eu,
estudou mais do que eu, praticou e pratica mais esportes. Paro e me pergunto
que fiz dos meus anos de vida. Já fui atropelado e sofri alguns acidentes, como
explosão, queda e afogamento. Mas entre os acidentados não estou na primeira
fila. Tenho vários amigos que já caíram de avião, outros de cavalo, alguns
sofreram pavorosos desastres de automóveis, um esteve preso num armário
enquanto uma casa (não a dele, é claro!) se incendiava, outro ajudou a salvar o
navio Madalena em meio a tremendas ondas que ameaçavam
arrebentar sua lancha a todo momento.
Que fiz eu de minha vida?
Em matéria de cultura encontro imediatamente quinhentas pessoas, só entre as
que eu conheço, que sabem mais línguas do que eu, leram mais, falam melhor e
mais logicamente, conhecem mais de teatro e citam com precisão escolas
filosóficas, afirmando que tal pensamento pertence a esta e contradiz aquela.
Que fiz eu? De esportes ignoro tudo, não sei sequer contar os pontos de vôlei,
só assisti até hoje a uma partida de pólo, nunca joguei futebol e quando vou
ver esses jogos desse esporte, só consigo reconhecer os jogadores mais famosos.
Esqueço o nome de todos, e no domingo seguinte já não sei mais o escore da
partida a que assisto neste. Nado mal, corro pedras, jamais consegui me
levantar num esqui aquático, não guio lancha, joguei golfe uma vez, tênis seis
meses, não entendo de velejar (o que já me causou uma grande humilhação diante
de esportivíssimas americanas de quinze anos que me conduziram num passeio lá
na terra delas), e, em matéria de mares, nunca lhes sei os ventos e fico parvo
com o senso de direção de muitos e muitos de meus amigos que jamais supus
tomassem nada de brisa e tufões. Guio, mas o motor de meu carro é para mim um
mistério indevassável. Sei apenas abrir o capô e contemplar a máquina, atitude
metafísica que até hoje não pôs carro algum em marcha.
Seria eu então um homem dedicado á cultura propriamente dita, aos livros, ao
estudo, ao amor da leitura e do pensamento? Não, pois meu pensamento é confuso
e minha leitura parca. Conheço homens, dos que não vivem de escrever, que
pensam muito melhor do que eu e leram muito mais, sem contar os especialistas,
que conhecem livro pelo cheiro.
Entre os que viajam também não sou dos que tenham viajado mais. Com o agravante
de que nunca sei bem onde estou, não conheço a distância que vai de Roma a
Paris, nem sei se Marselha está ao Sul ou ao Norte da Itália. Fico boquiaberto
quando vejo amigos meus apontarem estátuas e falarem sobre os personagens que
elas representam com uma facilidade com que falariam de si próprios. Mesmo o
conhecimento de nomes, pessoas e fatos adquiridos em viagens eu o esqueço em
três semanas. Mas não adianta o leitor querer me consolar, dizendo que talvez
eu seja um bonvivã, porque nunca o fui dos maiores, tendo minha vida sido
conduzida sempre numa certa disciplina, necessária a quem veio de muito longe.
Donde o amigo poderá concluir então que eu sou um trabalhador infatigável, um
esforçado, um detonado. E isso também não é verdade porque, com raras exceções,
nunca trabalhei demasiadamente e cada vez procuro trabalhar menos, numa
conquista ao mesmo tempo prática e filosófica. Bebo? Bebo mal e ocasionalmente.
Não sei quando a bebida é boa ou falsificada. Não sei o nome dos vinhos mais
triviais e sempre me esqueço qual é o restaurante em que eles fazem um prato
que certa vez eu adorei. Por mais jantares a que tenha ido e por melhores
alguns lugares que tenha freqüentado, devo sempre esperar que alguém se sirva
na minha frente para não pegar o talher errado e o copo idem. Além do que não
como muito, nem tenho nenhuma particular predileção por comer. Gosto então da
vida calma, sou um praticante da meditação e do ioga? Nunca dos que mais o são.
Por outro lado a extrema agitação também não me é familiar.
Que fiz da minha vida? Quando há um acidente de rua, vem-me o pavor de tomar
partido, pois nunca tenho realmente a convicção do lado certo. Se fala o mais
poderoso eu sou inclinado a ficar de seu lado por uma tendência a defender os
que hoje são mais comumente acusados de todos os males, vítimas do tempo. Se
fala o mais humilde sinto-me inclinado a defendê-lo por um ancestralismo que me
faz seu irmão, por idéias arraigadas que fazem com que todo homem queira lutar
instintivamente pelo mais fraco. Por quê? Não sei. Sou bom de guardar nomes,
caras, datas? Já disse que não. Sempre esqueço o nome dos conhecidos e troco o
dos amigos mais íntimos num fenômeno parifásico que só a loucura mesma
explicaria ou então a bobeira nata que Deus me deu. E política meu conhecimento
chega ao máximo de saber que o Sr. Plínio Salgado pertence ao PRP, o Brigadeiro
à UDN e Jango ao PTB e creio que há alguns outros partidos também. Mas mesmo
essas convicções não são inabaláveis e, se alguém me pegar desprevenido e fizer
dessas letras e nomes outras combinações, lá vou eu a aceitá-las, embrulhado e
tonto, até que outro interlocutor crie para mim novas combinações e novas
confusões.
Mas peguem um puro e simples crime e eu nunca sei quem matou a empregada e em
meu peito jamais se chegou a criar uma suspeita sólida a respeito do poeta de
Minas. Isso, aliás é o máximo a que vou – sei que houve um crime em Minas
Gerais, alguém matou alguém. O morto não está na lista de minhas lembranças,
não sei de quem se trata. Sei que o indiciado assassino é um poeta, vi sua cara
barbada e meio calva em muitos jornais e revistas. Mas meus conhecidos sabem de
tudo. As mulheres de meus conhecidos então nem se fala. Que fiz eu de minha
vida? – me pergunto de novo, honestamente, com a surpresa e a amargura com que
o Senhor perguntava: “Caim, que fizeste de teu irmão?” Pois boêmio não sou,
embora tenha gasto milhares de noites solto pelas ruas. Mas os boêmios me
consideram um arrivista da boemia assim como os homens cultos me consideram um
marginal da cultura. E os esportistas a mesma coisa com relação aos parcos
esportes que pratico. Todos com carradas de razão.
E nem a maior parte do meu tempo foi gasta em conquistas amorosas, pois nesse
terreno o Porfírio Rubirosa, se me conhecesse, me olharia com o mesmo desprezo
com que me olham conhecidos galãs nacionais.
Dessa mente confusa, dessa existência confusa, dessas mal-traçadas-linhas de
viver creio que só resta mesmo uma conclusão a que durante anos e anos me
recusei por orgulho e vergonha – sou, por natureza e formação, um humorista."
A última crônica
Fernando Sabino
A caminho de casa,
entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na
realidade estou adiando o momento de escrever.
A perspectiva me
assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano
nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu
pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano,
fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao
circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante
de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico,
torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada
para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se
repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não
sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim,
onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de
pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede
de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras,
deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na
cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal
ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao
redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição
tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam
para algo mais que matar a fome.
Passo a
observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou
do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no
balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando
imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este
ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A
mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua
presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem
atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um
bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida
na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom
deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três,
pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe
remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O
pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também,
atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas,
minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela
serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto
ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando
as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada,
cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra
você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a
guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos
sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura —
ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O
pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente
do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos
se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça,
mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
Texto extraído do livro "A
Companheira de Viagem", Editora
do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.
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