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sexta-feira, 26 de julho de 2013

Onde foi?

Onde foi que você se perdeu?
Onde foi que sua calma e tranquilidade escorreram pelo seu bolso furado? Ou melhor: decidiram te abandonar. Sua calma, por maus tratos, e a tranquilidade por vergonha de te pertencer. Onde foi que você deixou de ver o brilho do céu, agora cada vez mais apagado por suas burras brigas, inúteis. Onde foi que você deixou de ouvir todos aqueles que te amam, que querem completar-te, em função da sua ilustre experiência de vida, infalível – petrificada. Onde foi que seus gritos tornaram-se mais altos e claros que o som do seu canto, da tua voz falha ao acordar, do seu sorriso fino. Onde foi, heim?

Seja lá onde for, desejo que nunca mais volte. Nem mesmo para buscar as coisas que deixou jogadas no caminho, nesse caminho sem volta. Não há garantias de que você não vá se perder igualmente, então não vá. Não vá ! 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Palavra

              Ei Palavra, mais uma vez vou precisar usar-te. Tu que sempre chega tão mansa, em um silencio calmo, pedindo-me que a use. Nas horas mais não oportunas da minha noite chegas, pedindo colo. Suplicando: "Me escreve, que em troca te dou paz”. Vou precisar usar-te para dizer tudo aquilo que não sai da boca, não por falta de coragem, ou por medo, mas sim por falta de capacidade: não me foi ensinado escrever com a voz, só consigo dizer com letras, algum papel e aquele sentimento louco que me toma por completo quando consigo fazê-la sair da minha mente, te dar vida e cor – e ao saber que és toda meu reflexo, desde a forma, até o sentido – orgulho-me, por ter-te só minha, minha palavra.

                Agora aqui estamos, no mesmo plano. Você nascida de mim, e eu de você. Eu de carne-osso, você tinta e papel. Seja bem-vinda! Contudo, Palavra – tome cuidado. Como seu pai preciso alertar-te sobre os perigos do mundo aqui fora. Antes a tinha protegida no calor dos meus pensamentos, era segura e totalmente por mim controlável. Agora, não mais: podem traduzir-te mal, dizer coisas que você não é, podem até rir de ti! Dar-te sentidos que nunca imaginamos que podias ter. Toma cuidado, vai – vou estar daqui te olhando, enquanto você entra em outras mentes e se transforma ao gosto daquele que te lê.

             Mas promete uma coisa, uma única coisa? Jura que vai manter o frescor e o carinho com que te fiz? Que vai conservar o amor das tuas letras e o sentimento alegre que surgiu quando minhas mãos te esculpiram? Jura?! 

Sopro

Hoje a vida me pareceu um sopro.
Um sopro repentino.
Mas um sopro-furacão.
Daqueles que, mesmo leves, são capazes de acabar com os nossos vistosos castelos de cartas.
Capazes de esvoaçar nossos cabelos enquanto corremos, de nos fazer sentir o vento sobre a pele ou um sussurro fino no ouvido.
Um sopro-soco: dado para acordar aqueles que dormiram sobre a brisa tranquila de outrora.
Enfim, um sopro - que quando solto pela boca de quem sabe - transforma-se em um belo assobio.


Mãos

          Certa vez encontraram-se duas mãos em uma noite dessas, num táxi qualquer. Uma, que ansiava pelo encontro há tempo, assustada pelo acoplamento súbito inesperado; outra tímida quieta, mas certa de onde estava. Brindavam as unhas, sentiam os dedos. Forjaram votos de não abandono, aquecimento mútuo, com direito a paradas nos sinais. Faziam piada das outras duas, tão longe e frias. Ajeitavam-se nas curvas da rua, para o bem do pacto. Quando de tão juntas já eram uma só, lembraram que eram parte de um todo – subordinadas. Veio a ordem de separação, motor desligado. Tinham lágrimas nas palmas. Mesmo assim balançaram e deram “Adeus, obrigado(as)”. Afastadas, cada uma foi-se esconder no seu respectivo bolso, envergonhadas de não poderem nem honrar suas próprias promessas. 

Notas de um ignorante

Millôr Fernandes            

         "Entre as coisas que me surpreendem e humilham, figura esta, fundamental, que é a cultura de meus amigos e conhecidos. Não só a cultura no sentido clássico, mas também o conhecimento imediato das coisas e fatos que lhe estão sob os olhos no dia-a-dia da existência. Quem está a meu lado sempre leu mais livros do que eu, conhece mais política do que eu, já esteve em mais países do que eu, já teve mais casos sentimentais do que eu, estudou mais do que eu, praticou e pratica mais esportes. Paro e me pergunto que fiz dos meus anos de vida. Já fui atropelado e sofri alguns acidentes, como explosão, queda e afogamento. Mas entre os acidentados não estou na primeira fila. Tenho vários amigos que já caíram de avião, outros de cavalo, alguns sofreram pavorosos desastres de automóveis, um esteve preso num armário enquanto uma casa (não a dele, é claro!) se incendiava, outro ajudou a salvar o navio Madalena em meio a tremendas ondas que ameaçavam arrebentar sua lancha a todo momento.

           Que fiz eu de minha vida? Em matéria de cultura encontro imediatamente quinhentas pessoas, só entre as que eu conheço, que sabem mais línguas do que eu, leram mais, falam melhor e mais logicamente, conhecem mais de teatro e citam com precisão escolas filosóficas, afirmando que tal pensamento pertence a esta e contradiz aquela. Que fiz eu? De esportes ignoro tudo, não sei sequer contar os pontos de vôlei, só assisti até hoje a uma partida de pólo, nunca joguei futebol e quando vou ver esses jogos desse esporte, só consigo reconhecer os jogadores mais famosos. Esqueço o nome de todos, e no domingo seguinte já não sei mais o escore da partida a que assisto neste. Nado mal, corro pedras, jamais consegui me levantar num esqui aquático, não guio lancha, joguei golfe uma vez, tênis seis meses, não entendo de velejar (o que já me causou uma grande humilhação diante de esportivíssimas americanas de quinze anos que me conduziram num passeio lá na terra delas), e, em matéria de mares, nunca lhes sei os ventos e fico parvo com o senso de direção de muitos e muitos de meus amigos que jamais supus tomassem nada de brisa e tufões. Guio, mas o motor de meu carro é para mim um mistério indevassável. Sei apenas abrir o capô e contemplar a máquina, atitude metafísica que até hoje não pôs carro algum em marcha.
              Seria eu então um homem dedicado á cultura propriamente dita, aos livros, ao estudo, ao amor da leitura e do pensamento? Não, pois meu pensamento é confuso e minha leitura parca. Conheço homens, dos que não vivem de escrever, que pensam muito melhor do que eu e leram muito mais, sem contar os especialistas, que conhecem livro pelo cheiro.

            Entre os que viajam também não sou dos que tenham viajado mais. Com o agravante de que nunca sei bem onde estou, não conheço a distância que vai de Roma a Paris, nem sei se Marselha está ao Sul ou ao Norte da Itália. Fico boquiaberto quando vejo amigos meus apontarem estátuas e falarem sobre os personagens que elas representam com uma facilidade com que falariam de si próprios. Mesmo o conhecimento de nomes, pessoas e fatos adquiridos em viagens eu o esqueço em três semanas. Mas não adianta o leitor querer me consolar, dizendo que talvez eu seja um bonvivã, porque nunca o fui dos maiores, tendo minha vida sido conduzida sempre numa certa disciplina, necessária a quem veio de muito longe. Donde o amigo poderá concluir então que eu sou um trabalhador infatigável, um esforçado, um detonado. E isso também não é verdade porque, com raras exceções, nunca trabalhei demasiadamente e cada vez procuro trabalhar menos, numa conquista ao mesmo tempo prática e filosófica. Bebo? Bebo mal e ocasionalmente. Não sei quando a bebida é boa ou falsificada. Não sei o nome dos vinhos mais triviais e sempre me esqueço qual é o restaurante em que eles fazem um prato que certa vez eu adorei. Por mais jantares a que tenha ido e por melhores alguns lugares que tenha freqüentado, devo sempre esperar que alguém se sirva na minha frente para não pegar o talher errado e o copo idem. Além do que não como muito, nem tenho nenhuma particular predileção por comer. Gosto então da vida calma, sou um praticante da meditação e do ioga? Nunca dos que mais o são. Por outro lado a extrema agitação também não me é familiar.

          Que fiz da minha vida? Quando há um acidente de rua, vem-me o pavor de tomar partido, pois nunca tenho realmente a convicção do lado certo. Se fala o mais poderoso eu sou inclinado a ficar de seu lado por uma tendência a defender os que hoje são mais comumente acusados de todos os males, vítimas do tempo. Se fala o mais humilde sinto-me inclinado a defendê-lo por um ancestralismo que me faz seu irmão, por idéias arraigadas que fazem com que todo homem queira lutar instintivamente pelo mais fraco. Por quê? Não sei. Sou bom de guardar nomes, caras, datas? Já disse que não. Sempre esqueço o nome dos conhecidos e troco o dos amigos mais íntimos num fenômeno parifásico que só a loucura mesma explicaria ou então a bobeira nata que Deus me deu. E política meu conhecimento chega ao máximo de saber que o Sr. Plínio Salgado pertence ao PRP, o Brigadeiro à UDN e Jango ao PTB e creio que há alguns outros partidos também. Mas mesmo essas convicções não são inabaláveis e, se alguém me pegar desprevenido e fizer dessas letras e nomes outras combinações, lá vou eu a aceitá-las, embrulhado e tonto, até que outro interlocutor crie para mim novas combinações e novas confusões.
               Mas peguem um puro e simples crime e eu nunca sei quem matou a empregada e em meu peito jamais se chegou a criar uma suspeita sólida a respeito do poeta de Minas. Isso, aliás é o máximo a que vou – sei que houve um crime em Minas Gerais, alguém matou alguém. O morto não está na lista de minhas lembranças, não sei de quem se trata. Sei que o indiciado assassino é um poeta, vi sua cara barbada e meio calva em muitos jornais e revistas. Mas meus conhecidos sabem de tudo. As mulheres de meus conhecidos então nem se fala. Que fiz eu de minha vida? – me pergunto de novo, honestamente, com a surpresa e a amargura com que o Senhor perguntava: “Caim, que fizeste de teu irmão?” Pois boêmio não sou, embora tenha gasto milhares de noites solto pelas ruas. Mas os boêmios me consideram um arrivista da boemia assim como os homens cultos me consideram um marginal da cultura. E os esportistas a mesma coisa com relação aos parcos esportes que pratico. Todos com carradas de razão.

            E nem a maior parte do meu tempo foi gasta em conquistas amorosas, pois nesse terreno o Porfírio Rubirosa, se me conhecesse, me olharia com o mesmo desprezo com que me olham conhecidos galãs nacionais.

              Dessa mente confusa, dessa existência confusa, dessas mal-traçadas-linhas de viver creio que só resta mesmo uma conclusão a que durante anos e anos me recusei por orgulho e vergonha – sou, por natureza e formação, um humorista."


A última crônica

Fernando Sabino

         A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.
         A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
         Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
      Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

         A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.


         São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.



Texto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.


Meu ideal seria escrever...

Rubem Braga    

     Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".
      Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
      Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.
      E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".
     E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".
    E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.



A crônica acima foi extraída do livro "A traição das elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, pág. 91.