Millôr Fernandes
"Entre as coisas que me surpreendem e humilham, figura
esta, fundamental, que é a cultura de meus amigos e conhecidos. Não só a
cultura no sentido clássico, mas também o conhecimento imediato das coisas e
fatos que lhe estão sob os olhos no dia-a-dia da existência. Quem está a meu
lado sempre leu mais livros do que eu, conhece mais política do que eu, já
esteve em mais países do que eu, já teve mais casos sentimentais do que eu,
estudou mais do que eu, praticou e pratica mais esportes. Paro e me pergunto
que fiz dos meus anos de vida. Já fui atropelado e sofri alguns acidentes, como
explosão, queda e afogamento. Mas entre os acidentados não estou na primeira
fila. Tenho vários amigos que já caíram de avião, outros de cavalo, alguns
sofreram pavorosos desastres de automóveis, um esteve preso num armário
enquanto uma casa (não a dele, é claro!) se incendiava, outro ajudou a salvar o
navio Madalena em meio a tremendas ondas que ameaçavam
arrebentar sua lancha a todo momento.
Que fiz eu de minha vida?
Em matéria de cultura encontro imediatamente quinhentas pessoas, só entre as
que eu conheço, que sabem mais línguas do que eu, leram mais, falam melhor e
mais logicamente, conhecem mais de teatro e citam com precisão escolas
filosóficas, afirmando que tal pensamento pertence a esta e contradiz aquela.
Que fiz eu? De esportes ignoro tudo, não sei sequer contar os pontos de vôlei,
só assisti até hoje a uma partida de pólo, nunca joguei futebol e quando vou
ver esses jogos desse esporte, só consigo reconhecer os jogadores mais famosos.
Esqueço o nome de todos, e no domingo seguinte já não sei mais o escore da
partida a que assisto neste. Nado mal, corro pedras, jamais consegui me
levantar num esqui aquático, não guio lancha, joguei golfe uma vez, tênis seis
meses, não entendo de velejar (o que já me causou uma grande humilhação diante
de esportivíssimas americanas de quinze anos que me conduziram num passeio lá
na terra delas), e, em matéria de mares, nunca lhes sei os ventos e fico parvo
com o senso de direção de muitos e muitos de meus amigos que jamais supus
tomassem nada de brisa e tufões. Guio, mas o motor de meu carro é para mim um
mistério indevassável. Sei apenas abrir o capô e contemplar a máquina, atitude
metafísica que até hoje não pôs carro algum em marcha.
Seria eu então um homem dedicado á cultura propriamente dita, aos livros, ao
estudo, ao amor da leitura e do pensamento? Não, pois meu pensamento é confuso
e minha leitura parca. Conheço homens, dos que não vivem de escrever, que
pensam muito melhor do que eu e leram muito mais, sem contar os especialistas,
que conhecem livro pelo cheiro.
Entre os que viajam também não sou dos que tenham viajado mais. Com o agravante
de que nunca sei bem onde estou, não conheço a distância que vai de Roma a
Paris, nem sei se Marselha está ao Sul ou ao Norte da Itália. Fico boquiaberto
quando vejo amigos meus apontarem estátuas e falarem sobre os personagens que
elas representam com uma facilidade com que falariam de si próprios. Mesmo o
conhecimento de nomes, pessoas e fatos adquiridos em viagens eu o esqueço em
três semanas. Mas não adianta o leitor querer me consolar, dizendo que talvez
eu seja um bonvivã, porque nunca o fui dos maiores, tendo minha vida sido
conduzida sempre numa certa disciplina, necessária a quem veio de muito longe.
Donde o amigo poderá concluir então que eu sou um trabalhador infatigável, um
esforçado, um detonado. E isso também não é verdade porque, com raras exceções,
nunca trabalhei demasiadamente e cada vez procuro trabalhar menos, numa
conquista ao mesmo tempo prática e filosófica. Bebo? Bebo mal e ocasionalmente.
Não sei quando a bebida é boa ou falsificada. Não sei o nome dos vinhos mais
triviais e sempre me esqueço qual é o restaurante em que eles fazem um prato
que certa vez eu adorei. Por mais jantares a que tenha ido e por melhores
alguns lugares que tenha freqüentado, devo sempre esperar que alguém se sirva
na minha frente para não pegar o talher errado e o copo idem. Além do que não
como muito, nem tenho nenhuma particular predileção por comer. Gosto então da
vida calma, sou um praticante da meditação e do ioga? Nunca dos que mais o são.
Por outro lado a extrema agitação também não me é familiar.
Que fiz da minha vida? Quando há um acidente de rua, vem-me o pavor de tomar
partido, pois nunca tenho realmente a convicção do lado certo. Se fala o mais
poderoso eu sou inclinado a ficar de seu lado por uma tendência a defender os
que hoje são mais comumente acusados de todos os males, vítimas do tempo. Se
fala o mais humilde sinto-me inclinado a defendê-lo por um ancestralismo que me
faz seu irmão, por idéias arraigadas que fazem com que todo homem queira lutar
instintivamente pelo mais fraco. Por quê? Não sei. Sou bom de guardar nomes,
caras, datas? Já disse que não. Sempre esqueço o nome dos conhecidos e troco o
dos amigos mais íntimos num fenômeno parifásico que só a loucura mesma
explicaria ou então a bobeira nata que Deus me deu. E política meu conhecimento
chega ao máximo de saber que o Sr. Plínio Salgado pertence ao PRP, o Brigadeiro
à UDN e Jango ao PTB e creio que há alguns outros partidos também. Mas mesmo
essas convicções não são inabaláveis e, se alguém me pegar desprevenido e fizer
dessas letras e nomes outras combinações, lá vou eu a aceitá-las, embrulhado e
tonto, até que outro interlocutor crie para mim novas combinações e novas
confusões.
Mas peguem um puro e simples crime e eu nunca sei quem matou a empregada e em
meu peito jamais se chegou a criar uma suspeita sólida a respeito do poeta de
Minas. Isso, aliás é o máximo a que vou – sei que houve um crime em Minas
Gerais, alguém matou alguém. O morto não está na lista de minhas lembranças,
não sei de quem se trata. Sei que o indiciado assassino é um poeta, vi sua cara
barbada e meio calva em muitos jornais e revistas. Mas meus conhecidos sabem de
tudo. As mulheres de meus conhecidos então nem se fala. Que fiz eu de minha
vida? – me pergunto de novo, honestamente, com a surpresa e a amargura com que
o Senhor perguntava: “Caim, que fizeste de teu irmão?” Pois boêmio não sou,
embora tenha gasto milhares de noites solto pelas ruas. Mas os boêmios me
consideram um arrivista da boemia assim como os homens cultos me consideram um
marginal da cultura. E os esportistas a mesma coisa com relação aos parcos
esportes que pratico. Todos com carradas de razão.
E nem a maior parte do meu tempo foi gasta em conquistas amorosas, pois nesse
terreno o Porfírio Rubirosa, se me conhecesse, me olharia com o mesmo desprezo
com que me olham conhecidos galãs nacionais.
Dessa mente confusa, dessa existência confusa, dessas mal-traçadas-linhas de
viver creio que só resta mesmo uma conclusão a que durante anos e anos me
recusei por orgulho e vergonha – sou, por natureza e formação, um humorista."